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quinta-feira, 15 de setembro de 2011
MUSEU E EDUCAÇÃO
O texto a seguir é de autoria de Maria Célia T. Moura Santos, doutora em Educação, entre outros títulos. O escriba Valdemir Mota de Menezes, durante o seu curso de Licenciatura em História, leu este artigo literário.
Museu e Educação: Conceitos e Métodos
Este texto apresenta reflexões embasadas nos conceitos de educação e de processo museológico, considerando-os como suporte para as sugestões que são apresentadas no sentido de motivar e estimular as práticas museológica e educativa, que tenham como produto a construção do conhecimento. É destacada a importância da participação ativa dos diversos setores dos museus, dos professores e das comunidades, bem como o estabelecimento de parcerias, para a elaboração conjunta de projetos que tenham como referencial o patrimônio cultural, contribuindo para que os museus e as escolas sejam instituições integradas ao meio no qual estão inseridas, atuando como uma grande rede de interação.
Palavras-chave: museu, escola, educação, patrimônio cultural, museologia, processo museológico, processo educativo.
Para desenvolvimento do tema, achei por bem lançar um olhar para além dos problemas cotidianos dos nossos museus e das nossas escolas, impregnados da burocracia que sufoca e da falta de estrutura para o desenvolvimento dos trabalhos. Não que os considere menos importantes! Ponderei que já estamos cansados de “bater na mesma tecla”, causando até um certo esgotamento. Já levamos um bom tempo constatando, avaliando, chorando as nossas mágoas; agora, considero que é mais urgente do que nunca tomar como referencial os diagnósticos já realizados e, com o embasamento necessário, buscar outras estratégias de ação.
Optei, também, por fugir das discussões, até certo ponto já esgotadas, da aplicação de métodos e técnicas a, b, c ou d, que em nosso campo de atuação são denominados de educação patrimonial, visitas monitoradas, visitas de estudo, etc., evitando realizar uma análise que se esgota na aplicação da técnica pela técnica. Considero que os métodos e as técnicas a serem utilizados em projetos a serem desenvolvidos pelos museus e pelas escolas, devem ser apoiados nas concepções de educação, de museologia e de museus adotadas pelos sujeitos sociais envolvidos no planejamento e na execução dos mesmos, devendo, pois, ser adaptados aos diferentes contextos, aos anseios e expectativas dos diversos grupos com os quais estejamos atuando, sendo repensados constantemente, modificados e enriquecidos com a nossa criatividade, com a nossa capacidade de ousar, realizando um processo constante de ação e de reflexão, no qual teoria e prática estejam sempre em interação.
Achei por bem, portanto, apresentar as minhas reflexões sobre o tema a partir da abordagem dos conceitos de educação e processo museológico, ressaltando a relação entre os dois, para, em seguida, apontar algumas possibilidades de aplicação dos mesmos, nos museus e em outros contextos. Por considerar que os museus são instituições que devem ser alimentadas pela aplicação do processo museológico, portanto, como ação e reflexão, incluindo teoria e prática, optei por centrar a nossa análise no processo que irá embasar as ações museológicas, compreendidas como ações educativas, passíveis de serem aplicadas no interior do museu ou fora dele, conforme salientado anteriormente. Ressalto, entretanto, que os referencias aqui apresentados são considerados, por mim, como “temporários”, ou seja, indicam uma constante necessidade de adaptação e de renovação.
EDUCAÇÃO E PROCESSO MUSEOLÓGICO - A educação, neste trabalho, está sendo considerada como um processo. O termo processo, que também será utilizado quando da discussão da aplicação das ações museológicas, está sendo considerado em sua origem latina, ou seja: ação de avançar, atividade reflexiva que tem como objetivo alcançar o conhecimento de algo[1], seqüência de estados de um sistema que se transforma. Assim, educação significa reflexão constante, pensamento crítico, criativo e ação transformadora do sujeito e do mundo; atividade social e cultural, historico-socialmente condicionada. A educação, portanto, está sendo compreendida como “processo de formação da competência humana, com qualidade formal e política, encontrando no conhecimento inovador a alavanca principal da intervenção ética” (Demo, 1996, p.1).
A Museologia e a Educação, consideradas como historico-socialmente condicionadas, assumem, em cada período histórico, características que são resultado das ações do homem, no mundo, fazendo com que possamos considerá-las como possibilidade e não como determinação. Daí, a necessidade de contextualizá-las, situando-as no tempo e no espaço compreendendo-as como ação social e cultural. A contemporaneidade não comporta mais modelos de desenvolvimento tecnológico e científico dissociados dos referenciais culturais de um povo. Cultura e desenvolvimento, mais do que nunca, têm que andar de mãos dadas.
Outro aspecto que quero ressaltar, ainda relacionado à necessidade de interação entre as diversas áreas do conhecimento e do reconhecimento a que este está historico-socialmente condicionado, é a necessidade de abertura para o mundo, daqueles que são responsáveis por sua produção, no sentido de transformar a extensão em ação, acreditando que é possível construir conhecimento na troca, na relação entre o ensino formal e o não-formal, no respeito à experiência e à criatividade dos muitos sujeitos sociais que estão fora das academias e que podem nos indicar caminhos e soluções muitas vezes por nós despercebidos, os quais, também, serão enriquecidos a partir das nossas reflexões e do conhecimento por nós produzido.
Comentando sobre a necessidade de abertura da escola ao meio, Flecha e Tortajada,(2000, p.34), salientam que “a educação na sociedade da informação deve basear-se na utilização de habilidades comunicativas, de tal modo que nos permita participar mais ativamente e de forma mais crítica e reflexiva na sociedade”. Os autores sugerem que as escolas sejam transformadas em comunidades de aprendizagem, apoiadas nos conceitos de educação, integrada, participativa e permanente. Ao considerar que os processos educativos têm um caráter contínuo e permanente e que não se esgotam no âmbito escolar, salientam que temos que reconhecer que as aprendizagens que as pessoas realizam não se reduzem às oferecidas na escola; sendo assim, consideram de fundamental importância a incorporação da comunidade e do meio familiar ao trabalho diário da escola. Salientam ainda os referidos autores que “não se deve repassar conhecimentos ‘cadêmico-formais’de maneira exclusiva. Deve-se partir da combinação entre o prático, o acadêmico e o comunicativo, fazendo com que a comunidade e as famílias participem juntamente com os professores”.
A análise da educação, portanto, está sendo aqui realizada compreendendo-a como um processo que deve ter como referencial o patrimônio cultural, considerando que este é um suporte fundamental para que a ação educativa seja aplicada, levando em consideração a herança cultural dos indivíduos, em um determinado tempo e espaço, considerando que as diversas áreas do conhecimento não funcionam como compartimentos estanques, mas são parte de uma grande diversidade, que é resultado de uma teia de relações, em que cultura, ciência e tecnologia em cada momento histórico, são construídas e reconstruídas pela ação do homem, produtor de cultura e conhecimento. Nesse sentido, compreendemos que a escola é uma instituição que faz parte do patrimônio cultural e, ao mesmo tempo, é alimentada por diversos patrimônios culturais, representados pelo conhecimento produzido e acumulado ao longo dos anos, resultado da herança cultural construída pelos sujeitos sociais ao longo da vida, ou seja, a tradição, que deve ser compreendida, também, como um processo de construção e reconstrução.
Ao justificar a adoção do termo reconstrutivo para a aprendizagem, Demo (2000,p.102) registra que aprendemos a partir daquilo que já aprendemos, conhecemos a partir do que está conhecido, lemos a realidade dentro de certo contexto prévio, entendemo-nos na linguagem sobre pano de fundo partilhado e não questionado. O autor salienta que utiliza o termo reconstrutivo fazendo uma alusão tanto à sua marca biológica de interpretação seletiva quanto à social de formação do sujeito capaz de fazer história. A reconstrução conduz-nos, então, a compreender a educação como projeto. Sacristán (2000, p. 49 ), comentando sobre a compreensão da educação como projeto, destaca que isso distingue a importância de um certo imaginário individual e coletivo que o configure e dê força de projeção futura, tornando claro que não está falando de um projeto de sociedade de indivíduos perfeitos, considerados como algo fixo, o que , na verdade, destaca o autor, suprimiria qualquer pluralismo. Refere-se a um projeto como imagem-tentativa e revisável, à medida que é construída de forma aberta. Ao comentar que a educação se nutre da cultura conquistada, comenta que ela atinge o seu sentido mais moderno como projeto, pois tem a capacidade de fazer aflorar homens e mulheres e sociedades melhores, com melhor qualidade de vida; isto é, encontra sua justificativa em transcender o presente e tudo o que vem dado, e, concluindo, salienta que sem utopia não há educação.
Comentando sobre a importância da tradição para o processo educativo, o mesmo autor ressalta que só se pode pensar a partir do que foi pensado por outros.Destaca,ainda,que só temos o que os outros conquistaram, valorizações do que foi feito, mais os desejos de continuar de uma determinada maneira o processo de continuar conquistando. A educação, portanto, alimenta-se da tradição, sendo esta o suporte essencial que lhe dá sentido, fornecendo a base necessária para a construção e reconstrução do conhecimento.
Sacristán (2000, p.49) ainda nos chama a atenção para a necessidade de manter e estimular, a partir das primeiras experiências de aprendizagem de materiais herdados, a liberdade, a independência pessoal, o valor da expressão de cada um e da autonomia[2] como sementes das quais poderá nascer uma atitude crítica para a reconstrução da tradição:
“O herdado” compreende os âmbitos mais diversos da experiência constituída em saber codificado: a ciência, a tecnologia, o conhecimento social, as artes, a literatura, etc. Em todos eles, refletem-se as lutas da humanidade para dominar o mundo, para melhorá-lo, para vivê-lo de maneiras diferentes. Nesses saberes, também se encontram os instrumentos e as imagens que denunciam os erros cometidos, as injustiças e as necessidades insatisfeitas. Uma seleção adequada de tudo isso preenche-nos o programa de uma ilustração ponderada para continuar reflexivamente e refazer o progresso, que deve ser material e espiritual, instrumental e moral.
É interessante registrar, entretanto, que os conteúdos transmitidos pelas escolas, ao longo dos anos, têm privilegiado padrões de cultura importados, aplicados, sem a devida redução social, em currículos com conteúdos impostos de cima para baixo, dissociados da realidade dos alunos, em escolas burocratizadas e distantes das comunidades na qual estão inseridas. Tema por mim já discutido (Santos, 1993), realizando uma reflexão sobre a atuação dos museus e das escolas, no Brasil. No contexto da escola burocratizada, cuja análise-diagnóstico foi ali apresentada e que, até certo ponto, ainda pode ser considerada atualizada, há a adoção do conceito de patrimônio cultural como a “acumulação de bens, produzidos no passado e representativos da produção cultural de determinadas camadas da sociedade”, patrimônio este, preservado e depositado nos museus, para deleite de um determinado grupo da sociedade. O conceito de museu, para a grande maioria de professores e alunos, ainda permanece como “um local onde se guarda coisas antigas”, sendo que o patrimônio cultural é compreendido como algo que se esgota no passado, cabendo aos sujeitos sociais, contemplá-lo, de maneira passiva, sem nenhuma relação com a vida, no presente. Cultura, patrimônio e tradição são produtos dissociados do cotidiano do professor e da vida dos seus alunos.
Repensar a tradição e reconstruí-la é missão primordial da escola; o legado cultural deve ser a base, o referencial básico para a apresentação de novos problemas e de novas abordagens, o que só poderá ser conseguido por meio da pesquisa, considerada como princípio educativo. Demo (1996, p.7 ) chama a atenção para o fato de que é essencial desenvolver a face educativa da pesquisa, pois, caso contrário iríamos restringi-la a mera acumulação de dados, experimentos, leituras, que não passam de insumos preliminares, enquanto a pesquisa inclui sempre a percepção emancipatória do sujeito que busca fazer e fazer-se oportunidade, à medida que começa e se reconstitui pelo questionamento sistemático da realidade. Incluindo a prática como componente necessário da teoria e vice-versa, englobando a ética dos fins e dos valores. A pesquisa, como princípio educativo, deveria ser, então, o caminho a ser percorrido, no sentido de estabelecer uma relação efetiva entre educação e cultura, visando à apropriação, à reapropriação e à criação de novos patrimônios culturais.
AÇÃO EDUCATIVA E DE COMUNICAÇÃO - A partir da compreensão de que a educação se apóia na construção e reconstrução do patrimônio cultural, buscarei estabelecer uma aproximação entre os dois processos: educativo e museológico, embora reconheça as especificidades de cada um, procurarei estabelecer as relações entre os mesmos, com o objetivo de apontar, posteriormente, possibilidades de ações conjuntas. É importante compreendermos com qual conceito de processo museológico estamos trabalhando, para que seja possível realizar a análise de aproximação proposta.
Assim como a educação, o patrimônio cultural é o referencial básico para o desenvolvimento das ações museológicas. Os processos museais gestados, ao longo dos anos, contribuíram, de modo efetivo, para a ampliação do seu conceito, na medida em que, para sua aplicação, o patrimônio cultural é compreendido como a relação do homem com o meio, ou seja, o real, na sua totalidade: material, imaterial, natural e cultural, em suas dimensões de tempo e de espaço. Conseqüentemente, os bens culturais a serem musealizados também foram ampliados. Nesse sentido, as ações museológicas não são processadas somente a partir dos objetos, das coleções, mas tendo como referencial o patrimônio global, na dinâmica da vida, tornando assim necessária uma ampla revisão dos métodos a serem aplicados nas ações de pesquisa, preservação e comunicação, nos diferentes contextos.
Por outro lado, a ampliação do conceito de patrimônio está relacionada, também, à criação de novas categorias de museus, como ecomuseu, museu comunitário, museu de vizinhança, etc. Essas novas categorias de museus, abertas a uma população e a um território, contribuiram, também, para que as ações museológicas possam ser processadas fora do espaço restrito do museu, abrindo, assim, amplas possibilidades para a realização de novos processos de musealização. Do ponto de vista metodológico, foi um vetor a incentivar a busca de soluções criativas, bem como para avaliar as práticas museológicas aplicadas em outras categorias de museus.
O fazer museológico é compreendido, então, como um processo, caracterizado pela aplicação das ações de pesquisa, preservação e comunicação, conforme explicitado a seguir:
· a atividade de pesquisa tem como objetivo a construção do conhecimento, tomando como referencial o cotidiano, qualificado como patrimônio cultural, ou seja, observação, análise e interpretação da realaidade, qualificada como patrimônio cultural.Esse conhecimento é construído na ação museal e para a ação museal, em interação com os diversos grupos envolvidos. Não se trata, da pesquisa que se esgota na mera descrição e análise dos objetos. A pesquisa alimenta todas as ações museológicas, em processo.
· na ação de preservação são destacadas as seguintes etapas:
Coleta - o acervo é o conjunto dos bens dinâmicos, em transformação em uma comunidade, e não somente uma coleção. Trabalha-se com o acervo institucional, ou seja: material arquivístico e iconográficos, plantas, maquetes, depoimentos testemunhos, etc., e com o acervo operacional: as áreas do tecido urbano socialmente apropriadas como paisagens, estruturas, monumentos, equipamentos, as técnicas do saber e do saber fazer, com os artefatos, com o meio rural, etc.
classificação e registro – o processo documental não se limita ao registro do acervo. Busca-se, por meio da cultura qualificada, produzir conhecimento, elaborado no processo educativo, realizando ações de pesquisa. Há uma documentação dos dados coletados, que são sistematizados, de acordo com as características das diversas realidades que estão sendo musealizadas, formando o banco de dados do museu, referente à realidade local, a partir das ações de pesquisa, por meio da ação interativa entre os técnicos e os grupos envolvidos. Busca-se a qualificação da cultura, da análise e compreensão do patrimônio cultural na sua dinâmica real e não a seleção de determinados aspectos para armazenamento e conservação. O banco de dados é o referencial básico de informação, aberto à comunidade, e que deve ser alimentado, constantemente, pelos diversos processos, em andamento no museu.
Os instrumentos utilizados na documentação são criados e adaptados a cada realidade, discutidos com os diversos grupos envolvidos na ação museológica e absorvidos pelos mesmos, para a sua aplicação. O processamento do conhecimento produzido e sua inclusão no banco de dados se dá com a participação dos componentes do museu, ao mesmo tempo em que os técnicos participam na elaboração dos instrumentos de coleta de dados, estabelece-se um processo dialógico no qual o museólogo e os demais grupos envolvidos são enriquecidos, tanto na fase do planejamento como na execução, havendo, também, um aumento da auto-estima de ambos quando o produto do seu trabalho é utilizado para a compreensão da realidade e para a construção de um novo conhecimento, atingindo, assim, os objetivos propostos na ação documental.
Conservação - busca-se a formação de atitudes preservacionistas. Estabelece-se um processo no sentido de compreender os objetivos da preservação, no fazer cotidiano das pessoas. A conservação é, então, um processo de reflexão para uma ação que se dá em um contexto social e não somente a aplicação de técnicas em determinados acervos. Esforços são concentrados na busca da sensibilização e na formação de conservadores, na própria população, a partir de suas aptidões e atitudes.
· quanto à comunicação, não está restrita ao processo de montagem das exposições. A exposição é parte integrante do processo museológico, mas é importante registrar que sempre fica uma distância entre o material “inerte” que é exposto e o processo vital que lhe deu origem. Ao contrário do procedimento mais usual dos museus, em que a exposição é o ponto de partida no sentido de estabelecer uma interação com o público, na ação museológica aqui proposta, a exposição é, ao mesmo tempo, produto de um trabalho interativo, rico, cheio de vitalidade, de afetividade, de criatividade e de reflexão, que dá origem ao conhecimento que está sendo exposto e a uma ação dialógica de reflexão, estabelecida no processo que antecedeu a exposição e durante a montagem, além de ser ponto de partida para outra ação de comunicação.
As demais ações museológicas de pesquisa e preservação, já analisadas anteriormente, também são um processo de comunicação, uma vez que são gestadas por meio de um processo constante de interação em uma ação pautada no diálogo, levando-se em consideração as características dos grupos envolvidos e as diversas maneiras de estar no mundo e de se expressar, por meio de diferentes linguagens.É interessante ressaltar que as ações museológicas de pesquisa, preservação e comunicação estão integradas entre si, aos objetivos dos diferentes projetos e às características dos diversos grupos sociais, em um processo constante de revisão, de adaptação e de renovação.
É necessário salientar que, como processo, a ações museológicas não podem esgotar-se em si mesmas, na mera aplicação da técnica pela técnica. Portanto, para que a Museologia seja aplicada, com o objetivo de atingir, por meio da interpretação e uso do patrimônio cultural, o desenvolvimento social e o exercício da cidadania, é necessário que seja aplicada com competência formal e política, ou seja, é necessário desenvolver a face educativa da Museologia. Assim como na educação, o processo museológico é compreendido como ação que se transforma, que é resultado da ação e da reflexão dos sujeitos sociais, em determinado contexto, passível de ser repensado, modificado e adaptado em interação, contribuindo para a construção e reconstrução do mundo. Daí, o sentido de associarmos o termo processo às ações de musealização, compreendido como uma seqüência de estados de um sistema que se transforma, por meio do questionamento reconstrutivo, e que, ao transformar-se, transforma o sujeito e o mundo. A utilização do termo processo permite atribuir, portanto, as dimensões social e educativa à Museologia.
Compreender a ação museológica como ação educativa significa, portanto, caracterizá-la como ação de comunicação, porque é buscando as interfaces das ações de pesquisa, preservação e comunicação que conseguimos nos distanciar da compartimentalização das disciplinas e, ao mesmo tempo, realizar, na troca, no diálogo, na interação com os nossos pares e com os demais sujeitos sociais envolvidos nos diversos projetos, nos quais estejamos atuando, estabelecer metas e objetivos que não se esgotam na aplicação da técnica, isolada, descontextualizada, evitando, assim, a dissociação entre os meios e o fim. Portanto, considero que o processo museológico é um processo educativo e de comunicação, capaz de contribuir para que o cidadão possa ver a realidade e expressar essa realidade, qualificada como patrimônio cultural, expressar-se e transformar a realidade. Nesse sentido, o processo museológico é ação educativa e de comunicação. Assim, definimos o fato museal como:
a qualificação da cultura em um processo interativo de ações de pesquisa, preservação e comunicação, objetivando a construção de uma nova prática social.
As ações museológicas deverão ter como foco a nossa identidade como sujeitos singulares e múltiplos cidadãos, brasileiros, sul-americanos, cidadãos do mundo. Deverão ser abertas possibilidades de leituras múltiplas do mundo, de tal forma que o conhecimento faça parte de nossas vidas, de nossa cultura, de nossa identidade, e que não seja somente o conhecimento legitimado por outros grupos. Nesse sentido, os projetos poderão ser desenvolvidos com a participação dos núcleos comunitários, compreendidos, aqui, como um grupo de indivíduos que, apoiado em um patrimônio, realiza ações museológicas, com objetivos e metas estabelecidas a partir das suas necessidades, dos seus anseios, definindo, em conjunto, os desafios e as soluções para os mesmos, situando-os no contexto mais amplo da sociedade, com o objetivo de produzir conhecimento, a partir das múltiplas realidades, qualificadas como patrimônio cultural, integrando as diversas áreas do conhecimento, buscando, inclusive, atingir os seguintes objetivos:
§ promover a apropriação e a reapropriação do patrimônio cultural, por meio das ações museológicas de pesquisa, preservação e comunicação, tornando possível ao cidadão considerá-lo como um referencial para o exercício da cidadania;
§ contribuir, por meio do processo museológico, para gerar um processo de preservação do patrimônio global, visando ao desenvolvimento humano sustentável;
§ promover a participação dos cidadãos na elaboração e na execução dos projetos, contribuindo para a construção do conhecimento, a partir das suas histórias de vida, capacitando-os a formular e executar projeto próprio de vida no contexto histórico, integrando o museu à sociedade, buscando, conjuntamente, a construção de uma nova prática social;
§ democratizar o conhecimento produzido nos museus, nas escolas e nas instituições parceiras;
§ contribuir para aumentar as opções de lazer das comunidades envolvidas nos projetos;
§ musealizar o conhecimento produzido através dos diversos projetos, expondo, classificando, documentando, conservando, divulgando e promovendo a sua utilização;
§ interagir com as instituições educacionais elaborando projetos com o objetivo de utilizar o patrimônio cultural como um suporte essencial ao processo educativo e ao desenvolvimento social;
§ potencializar os recursos educativos da comunidade, realizando o intercâmbio necessário entre o ensino formal e o não-formal, um alimentando o outro;
§ viabilizar a utilização do potencial turístico da cidade e dos bairros onde os museus e as escolas estão inseridos;
§ promover a formação de profissionais que potencializem suas instituições como agentes de desenvolvimento regional;
§ contribuir para a construção do conhecimento na área da Museologia;
§ proporcionar meios para que as instituições museais melhorem e ampliem seus campos de atuação no meio social onde estão inseridas;
§ melhorar o desempenho e a qualificação dos profissionais que atuam em instituições culturais e educacionais;
§ desenvolver e aplicar tecnologias, na área da Museologia, observando-se as necessidades e diversidades regionais;
§ criar oportunidade de ampliar conhecimentos, rever conceitos e modificar procedimentos de trabalho;
§ oferecer aos profissionais da área subsídios da reflexão contemporânea na Museologia, capacitando-os para a aplicação de metodologias e técnicas de pesquisa, preservação e comunicação museológicos;
§ promover o intercâmbio e parcerias com outros museus e instituições nos âmbitos local, nacional e internacional, por meio da realização de programas de cooperação mútua.
A MUSEOLOGIA, O MUSEU E A EDUCAÇÃO - As concepções de Educação e de Museologia aqui apresentadas, apontam para a necessidade de reformulação das metas e dos objetivos a serem alcançados na interação entre museu e escola, o que deverá influenciar, também, na reestruturação dos procedimentos a serem adotados para operacionalização dos projetos a serem desenvolvidos na atuação conjunta entre as duas instituições.Não pretendo, como já foi dito na apresentação do presente trabalho, apresentar receitas para a execução dos programas a serem desenvolvidos, o meu objetivo é, a partir das reflexões apresentadas anteriormente, e, apoiada na minha experiência na execução de projetos envolvendo museus, escola e comunidade, apresentar algumas reflexões e contribuições que possam, talvez, tornar este trabalho conjunto mais eficaz, no sentido de atingir a nossa missão como educadores.
É necessário registrar que não estamos vinculando a concepção de processo museológico, bem como as sugestões aqui apresentadas a uma categoria específica de museu; compreendemos que a aplicação do processo museológico independe das categorias de museus, o que buscamos é aproximar processos e instituições.
As sugestões que são apresentadas a seguir têm o objetivo de motivar, de estimular a prática museológica, que tenha como produto a construção do conhecimento, que seja, portanto, educativa:
· o museu, como instituição historico-socialmente condicionada, não pode ser considerado um produto pronto, acabado; ele é o resultado das ações dos sujeitos que o estão construindo e reconstruindo, a cada dia. São as nossas concepções de museologia e de museu que estarão atribuindo à instituição diferentes perfis, que deverão ser adaptados aos diversos contextos. Daí, a necessidade de uma avaliação constante que deverá fornecer dados significativos para a definição da missão e dos objetivos,o que implica a necessidade de abertura, por parte de seu corpo técnico e das pessoas responsáveis por sua administração, manifestada em atitudes que demonstrem a motivação e o desejo de mudar, de buscar uma atualização constante, compreendendo que, para desenvolver o pensamento crítico, é necessário haver sistematização e argumentação. Pensar a relação museu-escola na perspectiva de processo aqui apresentada, implica, sobretudo, a transformação dos responsáveis pelos projetos, que deverão ser desenvolvidos com qualidade formal e política;
· o museu, para atingir sua função pedagógica, deverá ter uma capacidade de produção própria, com questionamento crítico e criativo, sem, contudo, deixar de interagir com outras áreas do conhecimento. A pesquisa, como princípio científico e educativo, é o caminho para que o museu possa contribuir, efetivamente, para o desenvolvimento socio-cultural;
· a compreensão de que as ações museológicas de pesquisa, preservação e comunicação devam ser aplicadas em interação e como função educativa, aponta para a necessidade de uma ação integrada entre os técnicos que atuam em todos os setores dos museus, definindo metas e objetivos, em conjunto, ampliando assim as funções e os campos de aplicação das mesmas;
· é necessário compreender que não é somente o setor educativo do museu o responsável pelos programas com as escolas; a operacionalização das programações pode ser responsabilidade de um setor específico, ou de vários setores, em interação. O que é mais importante compreender é que todas as ações museológicas devem ser pensadas e praticadas como ações educativas e de comunicação, mesmo porque, sem esta concepção, não passarão de técnicas que se esgotam em si mesmas e não terão muito a contribuir com os projetos educativos que venham a ser desenvolvidos pelo museu, tornando a instituição um grande depósito para guarda de objetos;
· 0 processo de interpretação do patrimônio cultural deve ser desenvolvido com uma função educativa e não instrucionista. Nesse sentido, memorizar características das coleções e alguns fatos relacionados à vida, no passado, para serem transmitidos aos alunos, ou fazê-los representar cenas e vivências do passado sem o afastamento e a reflexão necessários para compreensão do tempo do aluno e do tempo passado, com pensamento crítico, torna-se, até certo ponto atividade pouco produtiva. Freire (2000) nos lembra que “a questão fundamental não está em que o passado passe ou não passe, mas na maneira crítica, desperta, com que entendemos a presença do passado em procedimentos do presente. Destaca o mestre que, “nesse sentido, o estudo do passado traz à memória do nosso corpo consciente a razão de ser de muitos dos procedimentos do presente e nos pode ajudar, a partir da compreensão do passado, a superar marcas suas”;
· compreender o objeto, a manifestação cultural, como um ponto de partida para questionamentos, para comparações, para estabelecer conexões entre o velho e o novo, entre arte e ciência, entre uma cultura e outra, para uma análise crítica e para o estímulo da criatividade, fazendo a ponte entre os objetos e a cultura do aluno, potencializando o patrimônio cultural como vetor de produção de conhecimento. Para tanto, é necessário repensar os procedimentos adotados nos programas desenvolvidos com as escolas, superando as questões burocráticas, as limitações de tempo, a ânsia de mostrar, com uma postura instrucionista, toda a coleção do museu. Mais do que tornar-se conhecido e divulgado, o museu necessita ser vivido, compreendido como um local onde a tradição pode ser conhecida, percebida, questionada e reinventada, estimulando e apoiando, inclusive, a criação de novos museus;
· interagir com outras instituições, com os sujeitos sociais que estão fora dos museus, “sair da gaiola”. Temos constatado, há anos, o isolamento dos museus. A minha experiência tem demonstrado que há imensas possibilidades de crescimento da Museologia, do museu e da Educação, quando nos dispomos, também, a aplicar as ações museológicas fora do espaço do museu. Ao assim procedermos, estaremos incentivando a criação de novos processos museais, bem como contribuindo para repensar as ações que estão sendo desenvolvidas nos museus já instituídos e nas escolas. Para que esse intercâmbio seja efetivado é necessário que estejamos abertos à cooperação e à participação, estabelecendo parcerias para a realização de projetos integrados, buscando o enriquecimento com a experiência do outro, o incentivo à criatividade e à abertura de novos caminhos, criando oportunidade de ampliar conhecimentos, rever conceitos e modificar procedimentos de trabalho, realizando uma gerência participativa, em que há troca e respeito à idéia do outro, mantendo uma comunicação permanente;
· assim como o museu, a escola também deve se tornar uma instituição aberta à comunidade e às parcerias com outras instituições. É possível criar uma rede de interação de recursos educativos, integrando-os a objetivos comuns, no sentido de tornar a escola um sistema aberto, em contínua comunicação com o meio, incentivando a criação de verdadeiras estruturas democráticas de participação pró-ativa. Considero que essa seria uma atitude fundamental no sentido de se qualificar o fazer cultural dos diversos participantes, como patrimônio cultural, buscando a sua apropriação e reapropriação.
· por meio de uma ação integrada com os Cursos de Museologia, com os técnicos que atuam nos museus e nas escolas, desenvolver projetos com o objetivo de melhorar o desempenho e a qualificação dos profissionais que atuam nessas instituições, visando à utilização do patrimônio cultural como instrumento de educação e do desenvolvimento social.
· em relação aos professores, acreditamos que estes devem deixar de ser considerados como um problema e passar a ser parceiros; não devem ser culpados pela falta de um relacionamento mais estreito entre os museus e as escolas, e pela falta de qualidade dos nossos programas. Considero que os nossos problemas de relacionamento com os professores não serão resolvidos apontando culpados. Quais os resultados efetivos conseguidos ao assim procedermos? Talvez, uma atitude de aproximação, de aposta na ação e na reflexão conjunta, nos ajude muito mais. Nesse sentido, sugiro que ampliemos a nossa rede de interação, tornando o museu e a aplicação das ações museológicas mais próximos das escolas, fazendo o caminho inverso do que estamos acostumados a fazer, atitude esta que poderá, também, abrir amplas possibilidades para a criação de uma grande rede de comunicação entre museus de diferentes categorias e as escolas, bem como para a utilização do patrimônio cultural das comunidades onde as escolas estão inseridas e do patrimônio da cidade, de uma forma mais ampla, em sua relação com o mundo. Esta proposta está embasada na experiência por mim vivenciada em um grande colégio da rede estadual de ensino da cidade de Salvador‑BA, quando a ação museológica desenvolvida no interior da escola aproximou alunos, professores, funcionários e membros da comunidade e de outros museus, do patrimônio do bairro, onde está inserida a escola, e da cidade, como um todo. Essa experiência proporcionou a oportunidade de realizar um treinamento em serviço, tornando a escola um local de aprendizagem para alunos, professores e profissionais da área da Museologia, executando vários projetos, no cotidiano da escola, tendo como referencial o patrimônio cultural.
· Sugerimos que a rede de comunicação acima proposta seja estendida, também, aos cursos de formação de professores, nos diferentes níveis, bem como aos Cursos de Museologia, com o objetivo de trabalhar com professores e alunos, realizando projetos que proporcionarão a oportunidade de vivenciar a rica experiência de, por meio da pesquisa, apoiada nos referenciais do patrimônio cultural, capacitar os futuros museólogos e professores para a realização de projetos semelhantes, com a participação de seus alunos. Assim, estarão, também, aproximando os Cursos da comunidade, da rede escolar e dos museus. Acho mesmo que a atuação conjunta dos cursos de formação de professores e dos Cursos de Museologia seja uma grande contribuição no sentido de viabilizar a execução das propostas aqui apresentadas;
· Consideramos fundamental que a ampliação da rede de interação aqui proposta atinja, também, os diversos escalões das instituições responsáveis pela administração das escolas e dos museus, vez que umas das maiores dificuldades que encontramos é vencer as barreiras das escolas e dos museus burocratizados, cujos projetos pedagógicos, quando existem, são elaborados para atingir objetivos impostos de cima para baixo. Acredito que a idéia da rede de interação deverá proporcionar, com certeza, a todos aqueles envolvidos nessa rica teia de relações, um aprendizado constante e renovado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS - Tenho consciência das imensas dificuldades que iremos encontrar para aplicar muitas das sugestões aqui apresentadas; compreendê-las não como receita, mas como possibilidades, talvez seja o primeiro passo no sentido de iniciar ou de alimentar processos museológicos já em andamento, testando-as, experimentando-as na vivência de cada um, buscando, assim, novas possibilidades de ação-reflexão, criando novos conceitos e novos métodos, pois, como já foi salientado, os referenciais aqui apresentados são “temporários”. Chamo a atenção, mais uma vez, para a necessidade de ousar, o que implica, com certeza, a coragem para enfrentar e solucionar problemas, com criatividade e muita determinação. Nesses tempos de desencantamentos, de falta de estímulo e de acomodação, nunca é demais relembrar, o nosso mestre Paulo Freire (2000), apresentando a citação de um texto seu, que considero muito apropriado para as reflexões que estamos realizando neste momento:
Não gostaria de ser homem ou de ser mulher se a impossibilidade de mudar o mundo fosse algo tão óbvio quanto é óbvio que os sábados precedem os domingos. Não gostaria de ser mulher ou homem se a impossibilidade de mudar o mundo fosse verdade objetiva que puramente se constatasse e em torno de que nada se pudesse discutir.
Gosto de ser gente, pelo contrário, porque mudar o mundo é tão difícil quanto possível. É a relação entre a dificuldade e a possibilidade de mudar o mundo que coloca a questão da importância do papel da consciência na história, a questão da decisão, da opção, a questão da ética e da educação e de seus limites.
É, pois, acreditando que somos sujeitos da História que os convido a entrar no novo milênio, não com desânimos, mas realizando projetos capazes de provocar transformações educativas e igualitárias, na sociedade da informação.
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[1] Japiassú, Hilton. Dicionário Básico de Filosofia / Hilton Japiassú, Danilo Marcondes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1996.
[2] O grifo foi por mim acrescentado com o objetivo de chamar a atenção para a necessidade de compreender a tradição como um conceito dinâmico, resultado da ação do homem, em um determinado tempo e espaço, portanto, historico-socialmente condicionada.
:: Maria Célia T. Moura Santos é professora aposentada da Universidade Federal da Bahia – Curso de Museologia, Museóloga, Mestre e Doutora em Educação.Atualmente ministra aulas nos Cursos de Especialização em Museologia do MAE/USP e do Museu Antropológico da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Goiás, no Curso de Especialização em Arte-Educação em Instituições Culturais da Universidade Federal do Amapá e no Mestrado em Museologia Social da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa-Portugal.
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